Sobre a atualidade de Carolina de Jesus
E em especial sobre o como essa atualidade se mostra da maneira mais cruel.
Primeiramente se você não conhece uma das mais importantes
autoras de nossa literatura está perdoado pois, apesar de ter sua obra
publicada em quatorze idiomas e ter uma relevância incrível, ela não é de fato
conhecida pelo grande público. Leiam um parágrafo sobre sua trajetória, vejam
suas fotos e sejam minimamente alfabetizados em termos sociais e saberão o nome
disso: racismo. Nosso velho conhecido.
Se você não a conhece dê uma pausa nesse texto e leia ao
menos o artigo da Wikipédia sobre ela. Depois você volta, ou então nada fará
muito sentido.
Bom, espero que agora a conheça. Mas como sei que a maioria vai simplesmente pular a foto e continuar lendo, darei uma nova oportunidade de redenção. Vá lá e conheça a autora, eu não saberia por onde começar para fazer um resumo da sua vida e da importância de sua obra, especialmente por a conhecer melhor também a pouco tempo.
Apesar de saber da existência da autora e de sua importância e impacto para a literatura brasileira a um tempo bastante razoável, nunca tinha lido nada seu. Ocorre que recentemente me envolvi em um projeto maravilhoso do programa PIBID Física da UFRuralRJ coordenado pela Profa. Viviane Morcelle.
Tal projeto visa entender o ensino da ciência e, em especial,
da física como um instrumento de debate e valorização dos direitos humanos. E
buscamos fazer isso através fundamentalmente de reflexões sobre a obra de
Carolina de Jesus. Aos leitores desavisados pode parecer pouco ortodoxo, mas me
dedicarei a falar sobre o assunto no futuro.
Nestas reflexões me deparei com Quarto de Despejo, publicado
em 1960 e sua obra mais icônica.
Ele consiste no diário da autora e narra em primeira pessoa
e de uma maneira crua e sem rodeios o cotidiano em uma favela da São Paulo de
sua época.
Parti minha leitura do ponto de vista de alguém que, apesar
de uma origem simples como a maioria dos descendentes de migrantes no Rio e Grande
Rio, sempre teve uma vida cercada dos privilégios possíveis e de oportunidades
incríveis que me colocaram em uma posição que a imensa maioria daqueles cujos
passos me trouxeram até aqui puderam ter.
Mesmo sendo (ou tentando ser) uma pessoa atenta e sensível
aos problemas sociais que me cercam e às mazelas inerentes do nosso modo econômico
e de vida, ler Quarto de Despejo foi como retirar um esparadrapo muito rápido.
Daqueles antigos e que colam bem. E esse esparadrapo estava sem nenhuma
proteção em cima de uma ferida. E essa ferida estava nos meus olhos. Se vocês
conseguirem imaginar a experiência de ter uma ferida nos olhos que te impede de
ver o mundo, cobrir esta ferida com algo improvisado e inadequado como um
esparadrapo sem proteção, poderão imaginar também como é retirar este remendo
de uma única vez.
Arde.
Recomendo a todos a leitura em especial àqueles que, como
eu, puderam mesmo com origem pobre ter a sorte de andar em uma corda bamba de privilégios
e não cair.
Mas e quanto à atualidade da autora?
Seria um pouco lugar-comum se eu falasse sobre isso tentando
mostrar o como nossa realidade social tem mazelas ainda tão firmes, o quanto
nosso tecido social ainda é estampado com o suor e o sangue de um povo que não
dá rosto ao país, mas apenas isso mesmo: o suor e o sangue.
Seria inútil para o leitor minimamente letrado que chegou
até aqui nesse texto encontrar uma reflexão sobre o como a esperança de
desenvolvimento social que pudemos alimentar (e que verbo maravilhoso para a ocasião:
alimentar) pôde morrer à míngua em tão pouco tempo.
O quanto a pandemia de Covid-19 pôde agravar e acelerar um
processo de empobrecimento das classes mais pobres que são cada vez mais
empurradas para a miséria. E ai daqueles que já estavam na miséria antes disso
começar!
Aqueles que comiam carne vermelha hoje comem frango, aqueles
que comiam frango hoje comem linguiça, aqueles que comiam linguiça comem ovo. E
ai daqueles que comiam ovo!
Este texto não é exatamente uma reflexão sobre isso.
Não é uma reflexão sobre a atualidade da obra, mas sobre a atualidade
da autora.
E não da Carolina de Jesus escritora publicada em quatorze
idiomas (mas que mesmo assim não foi reconhecida ou pôde experimentar um grau
de reconhecimento proporcional), mas da Carolina de Jesus que iniciou seu
diário em julho de 1955.
Que não tinha dinheiro para o pão e teve que obtê-lo através
de trocas. Que catava papel e outros materiais e, a cada dia, via a incerteza
sobre ter ou não o que dar aos filhos de comer.
Que em 16 de julho escrevia “Fui buscar água. Fiz o café.
Avisei as crianças que não tinha pão.” Ou ainda “A indisposição desapareceu sai
e fui ao seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no
lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava
comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava!
Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta.”
O que me incomoda não é apenas olhar ao meu redor e ver esta
realidade se tornando cada vez mais presente através da frieza das estatísticas.
O que me incomoda é que cada vez que ando pela minha cidade,
em especial no início da manhã ou tarde da noite, encontro com muitas Carolinas
de Jesus.
E quase sempre com o mesmo perfil: Uma mulher negra, pobre,
cuja idade já foi oculta pela miséria e que busca pelas ruas por algum tipo de
material reciclável que possa vender ou aproveitar enquanto leva pelas mãos um
pequeno João José ou uma pequena Vera Eunice.
A cena se repete e não apenas como uma coincidência de
histórias de vida separadas por quase sete décadas, mas mesmo como uma
realidade de muitas mulheres que estão na mesma situação.
Não reflito aqui de uma maneira geral sobre o contexto
social no qual vivemos, as Carolinas de Jesus das quais falo não são uma
metáfora sobre o assunto, mas exemplos cruelmente literais: Hoje, 17 de junho de 2021, ao descer o morro
onde moro passei por uma delas. Ontem à noite quando foi levar meu lixo para
fora após dar uma organizada na casa cruzei com outra.
Alguns meses atrás me peguei doando não alimento não
perecível ou algum valor em dinheiro para ajudar alguém a comprar um botijão de
gás, mas sim um saco de carvão. Não para alguém que queria fazer um churrasquinho
no aniversário de um filho, mas para alguém que estava tendo que cozinhar na
lenha e cuja pouca lenha que tinha conseguido para cozinhar algo para os filhos
tinha molhado com a chuva.
Pensei em terminar o texto de alguma forma que pudesse dar
alguma esperança.
Sinceramente não consigo nem encontro força para isso.
Hoje não assisti nada ainda, mas assistam “Emicida: Amarelo –
É Tudo pra Ontem” documentário dirigido por Fred Ouro Preto. Disponível na
Biblioteca Vermelha.
Texto forte, muito bom, e que consegue vir como um soco no estômago até pra quem tem entrado na vida de Carolina de Jesus
ResponderExcluirUm diário que começou sendo escrito em 1955 e ainda é tão atual e ainda poderia ser algo escrito hoje, 2021. O seu texto, assim como os relatos de Carolina Maria de Jesus, nos mostra a realidade nua e crua, e retratos sem photoshop da vivência de grande parcela da sociedade e da vivência em meio a essa pandemia que intensificou a presença de muitas "Carolinas de Jesus" a cada esquina.
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